As aristocracias
(Allan Kardec - Obras
Póstumas – 1ª parte)
Aristocracia vem do grego aristos, o melhor, e kratos,
poder. Aristocracia, pois, em sua acepção literal, significa: poder dos melhores. Há-se de convir em
que o sentido primitivo tem sido por vezes singularmente deturpado; mas,
vejamos que influência o Espiritismo pode exercer na sua aplicação. Para esse efeito,
tomemos as coisas no ponto de partida e acompanhemo-las através das idades, a
fim de deduzirmos daí o que acontecerá mais tarde.
Em nenhum tempo, nem no seio de nenhum povo, os
homens, em sociedade, hão podido prescindir de chefes; com estes deparamos nas
tribos mais selvagens. Decorre isto de que, em razão da diversidade das
aptidões e dos caracteres inerentes à espécie humana, há por toda parte homens
incapazes, que precisam ser dirigidos, homens fracos que reclamam proteção,
paixões que exigem repressão. Daí a necessidade imperiosa de uma autoridade. É
sabido que, nas sociedades primitivas, essa autoridade foi conferida aos chefes
de família, aos antigos, aos anciãos; numa palavra: aos patriarcas. Essa a
primeira de todas as aristocracias.
Tornando-se numerosas as sociedades, a
autoridade patriarcal veio a ficar impotente em certas circunstâncias. As
querelas entre povoações vizinhas deram lugar a combates; fez-se mister, para
dirigi-las, não mais os velhos, porém homens fortes, vigorosos e inteligentes;
daí os chefes militares. Vitoriosos, estes chefes foram investidos da
autoridade, esperando os seus comandados que com a valentia deles estariam
garantidos contra os ataques dos inimigos. Muitos, abusando da posição a que
tinham sido elevados, se apossavam dela por si mesmos. Depois, os vencedores
passaram a impor-se aos vencidos, ou os reduziram à escravidão. Daí a
autoridade da força bruta, que foi a segunda aristocracia.
Os fortes, com os bens que possuíam,
transmitiriam muito naturalmente a seus filhos a autoridade de que desfrutavam;
e os fracos, nada ousando dizer, se habituaram pouco a pouco a ter esses filhos
por herdeiros dos direitos que os pais haviam conquistado e a considerá-los
seus superiores. Veio assim a divisão da sociedade em duas classes: a dos
superiores e a dos inferiores, a dos que mandam e a dos que obedecem.
Estabeleceu-se de tal modo a aristocracia do nascimento, que tão poderosa e
preponderante se tornou, quanto a da força, visto que, se não tinha por si a
força, como nos primeiros tempos, em que importava fizesse cada um o sacrifício
da sua pessoa, dispunha de uma força mercenária. Na posse de todo o poder, ela
naturalmente se arrogou todos os privilégios.
Para conservação destes, era necessário lhes
dessem o prestígio da legalidade; ela então fez leis em seu pró- prio proveito,
o que lhe era fácil, pois que ninguém mais as fazia. Como isto, entretanto, não
bastasse, juntou aos privilégios o prestígio do direito divino, para torná-los
respeitáveis e invioláveis. A fim de lhes assegurar o respeito das classes
submetidas, que cada vez mais numerosas se faziam e mais difíceis de ser
contidas, mesmo pela força, um único meio havia: impedi-las de ver claro, isto
é, conservá-las na ignorância.
Se a classe superior houvesse podido manter a
classe inferior sem se ocupar com coisa alguma, tê-la-ia governado facilmente
durante ainda longo tempo; mas, como a segunda fosse obrigada a trabalhar para
viver, e trabalhar tanto mais quanto mais premida se achava, resultou que a
necessidade de encontrar incessantemente novos recursos, de lutar contra uma
concorrência invasora, de procurar novos mercados para os produtos, lhe
desenvolveu a inteligência e fez com que as próprias causas, de que os da
classe superior se serviam para trazê-la sujeita, a esclarecessem. Não se
patenteia aí o dedo da Providência?
A classe submetida viu com clareza as coisas;
viu a fraca consistência que lhe opunham e, sentindo-se forte pelo número,
aboliu os privilégios e proclamou a igualdade perante a lei. Este princípio, no
seio de alguns povos, marcou o fim do reinado da aristocracia de nascimento,
que passou a ser apenas nominal e honorífica, porquanto já não confere direitos
legais.
Elevou-se então uma nova potência, a do
dinheiro, porque com dinheiro se dispõe dos homens e das coisas. Era um sol
nascente e diante do qual todos se inclinaram, como outrora se curvavam diante
de um brasão. O que não se concedia ao título, concedia-se à riqueza e a
riqueza teve igualmente seus privilégios. Logo, porém, se aperceberam de que,
para conseguir a riqueza, certa dose de inteligência era necessária, não sendo
necessária muita para herdá-la, e de que os descendentes são quase sempre mais
hábeis em a consumir, do que em ganhá-la, de que os próprios meios de
enriquecimento nem sempre são irreprocháveis, donde resultou ir o dinheiro
perdendo pouco a pouco o seu prestígio moral e tender essa potência a ser
substituída por outra, por uma aristocracia mais justa: a da inteligência,
diante da qual todos podem curvar-se, sem se envilecerem, porque ela pertence
tanto ao pobre quanto ao rico.
Será a última? Será a mais alta expressão da
Humanidade civilizada? Não.
A inteligência nem sempre constitui penhor de
moralidade e o homem mais inteligente pode fazer péssimo uso de suas
faculdades. Doutro lado, a moralidade, isolada, pode, muita vez, ser incapaz. A
reunião dessas duas faculdades, inteligência
e moralidade, é, pois, necessária a
criar uma preponderância legítima, a que a massa se submeterá cegamente, porque
lhe inspirará plena confiança, pelas suas luzes e pela sua justiça.
Será essa a última aristocracia, a que se
apresentará como consequência, ou, antes, como sinal do advento do reinado do
bem na Terra. Ela se erguerá muito naturalmente pela força mesma das coisas.
Quando os homens de tal categoria forem bastante numerosos para formarem uma
maioria imponente, a massa lhes confiará seus interesses.
Como vimos, todas as aristocracias tiveram sua
razão de ser; nasceram do estado da Humanidade; assim há de acontecer com o que
se tornará uma necessidade. Todas preencheram ou preencherão seu tempo,
conforme os países, porque nenhuma teve por base o princípio moral; só este
princípio pode constituir uma supremacia durável, porque terá a animá-la
sentimentos de justiça e caridade. A essa aristocracia chamaremos: aristocracia intelecto-moral.
Mas, semelhante estado de coisas será possível
com o egoísmo, o orgulho, a cupidez que reinam soberanos na Terra?
Responderemos terminantemente: sim, não só é possível, como se implantará, por
ser inevitável.
Já hoje a inteligência domina; é soberana,
ninguém o pode contestar. É tão verdade isto, que já se vê o homem do povo
chegar aos cargos de primeira ordem. Essa aristocracia não será mais justa,
mais lógica, mais racional, do que a da força bruta, do nascimento, ou do
dinheiro? Por que, então, seria impossível que se lhe juntasse a moralidade? —
Porque, dizem os pessimistas, o mal domina sobre a Terra. — Quem ousará dizer
que o bem nunca o sobrepujará? Os costumes e, por conseguinte, as instituições
sociais, não valem cem vezes mais hoje do que na Idade Média? Cada século não
se assinala por um progresso? Por que, então, a Humanidade pararia, quando
ainda tem tanto que fazer? Por instinto natural, os homens procuram o seu
bem-estar; se não o acharem completo no reino da inteligência, procurá-lo-ão
algures, e onde poderão encontrá-lo, senão no reino da moralidade? Para isso,
torna-se preciso que a moralidade sobrepuje numericamente. Não há contestar que
muitíssimo se tem que fazer; mas, ainda uma vez, fora tola pretensão dizer-se
que a Humanidade chegou ao apogeu, quando é vista a avançar continuamente pela
senda do progresso.
Digamos, antes de tudo, que os bons, na Terra,
não são absolutamente tão raros como se julga; os maus são numerosos, é
infelizmente verdade; o que, porém, faz pareçam eles ainda mais numerosos é que
têm mais audácia e sentem que essa audácia lhes é indispensável ao bom êxito.
De tal modo, entretanto, compreendem a preponderância do bem, que, não podendo
praticá-lo, com ele se mascaram.
Os bons, ao contrário, não fazem alarde das
suas boas qualidades; não se põe em evidência, donde o parecerem tão pouco
numerosos. Pesquisai, no entanto, os atos íntimos praticados sem ostentação e,
em todas as camadas sociais, deparareis com criaturas de natureza boa e leal em
número bastante a vos tranquilizar o coração, de maneira a não desesperardes da
Humanidade. Depois, cumpre também dizê-lo, entre os maus, muitos há que apenas
o são por arrastamento e que se tornariam bons, desde que submetidos a uma influência
boa. Admitamos que, em 100 indivíduos, haja 25 bons e 75 maus; destes últimos,
50 se contam que o são por fraqueza e que seriam bons, se observassem bons
exemplos e, sobretudo, se tivessem sido bem encaminhados desde a infância; dos
25 maus, nem todos serão incorrigíveis.
No estado atual das coisas, os maus estão em
maioria e ditam a lei aos bons. Suponhamos que uma circunstância qualquer opere
a conversão de 50 por cento deles: os bons ficarão em maioria e a seu turno
ditarão a lei; dos 25 outros, francamente maus, muitos sofrerão a influência
daqueles, restando apenas alguns incorrigíveis sem preponderância.
Tomemos um exemplo, para ilustrar o que
acabamos de dizer: Há povos no seio dos quais o assassínio e o roubo são a
normalidade, constituindo exceção o bem. Nos povos mais adiantados e mais bem
governados da Europa, o crime é a exceção; acuado pelas leis, ele nenhuma
influência exerce sobre a sociedade. O que nesses povos ainda predomina são os
vícios de caráter: o orgulho, o egoísmo, a cupidez com seus cortejos.
Por que, progredindo esses povos, os vícios não
se tornariam a exceção, como o são hoje os crimes, ao passo que os povos
inferiores galgariam o nosso nível? Negar a possibilidade dessa marcha
ascendente fora negar o progresso.
Certamente, chegar a tal estado de coisas não
pode ser obra de um dia, mas, se há uma causa capaz de apressar-lhe o advento,
essa causa é, sem nenhuma dúvida, o Espiritismo. Fator, por excelência, da
fraternidade humana, por mostrar que as provas da vida atual são a consequência
lógica e racional dos atos praticados nas existências anteriores, por fazer de
cada homem o artífice voluntário da sua própria felicidade, a vulgarização
universal do Espiritismo dará em resultado, necessariamente, uma elevação
sensível do nível moral da atualidade.
Apenas elaborados e coordenados, já os
princípios gerais da nossa filosofia hão congregado, em imponente comunhão de
ideias, milhões de adeptos espalhados por toda a Terra.
Os progressos realizados pela sua influência,
as transformações individuais e locais que eles têm provocado em menos de
quinze anos, permitem apreciemos as modificações imensas e radicais que
operarão no futuro.
Mas, se, graças ao desenvolvimento e à
aceitação geral dos ensinos dos Espíritos, o nível moral da Humanidade tende
constantemente a elevar-se, singularmente se iludiria quem supusesse que a
moralidade preponderará sobre a inteligência. O Espiritismo, com efeito, não
quer que o aceitem cegamente; reclama a discussão e a luz.
“Em vez da fé cega, que aniquila a liberdade de
pensar, diz ele: Não há fé inabalável,
senão a que possa encarar face a face a razão, em todas as épocas da
Humanidade. A fé necessita de base e esta base consiste na inteligência
perfeita daquilo em que se haja de crer. Para crer, não basta ver, é,
sobretudo, preciso compreender” (O
Evangelho segundo o Espiritismo). Com bom direito, pois, podemos considerar
o Espiritismo como um dos mais fortes precursores da aristocracia do futuro,
isto é, da aristocracia intelecto-moral.
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