UNIÃO
DAS SOCIEDADES ESPÍRITAS DO ESTADO DE SÃO PAULO
Departamento
de Doutrina
Captação
de recursos em centros espíritas
Levantamento
realizado em ago/19
Marco
Milani
1. Introdução
Um
dos principais desafios de qualquer dirigente de centro espírita é
a manutenção e o desenvolvimento das respectivas atividades, pois
exige recursos de diferentes naturezas, inclusive financeiros.
Já
no século XIX, Allan Kardec, conhecedor da necessidade do
planejamento financeiro baseado na prudência, ao discorrer sobre as
características da Comissão Central do Espiritismo (ver Obras
Póstumas – 2ª parte), sabiamente alerta para não se tentar
cobrir despesas fixas com recursos eventuais, pois no longo prazo
essa medida prejudicaria a sustentabilidade da organização.
Trata-se de uma regra de ouro para qualquer administrador, tanto do
passado quanto dos dias atuais.
Kardec
sinalizou que as despesas deveriam ser compatíveis com o volume de
receitas recebidas, ou seja, primeiro verifica-se o volume de
recursos disponíveis para somente depois se assumir compromissos com
gastos, preservando a continuidade operacional das atividades. A
estrutura da organização seria proporcional à sua capacidade de
geração de renda.
Em
momento algum Allan Kardec sugere inverter essa relação de
prudência material, supondo que os gastos seriam cobertos por alguma
ação divina no futuro, como infelizmente podem supor aqueles que
cegamente confiam em soluções mágicas e não estão familiarizados
com técnicas administrativas.
No
Brasil, constatam-se diferentes práticas nas instituições
espíritas para a captação de recursos, tanto aquelas que geram
rendas de maneira mais perene, assim como aquelas decorrentes de
eventos pontuais. Muitas dessas práticas são bastante disseminadas
e plenamente aderentes aos princípios e valores espíritas. Algumas,
entretanto, ainda que estejam em conformidade legal, despertam
controvérsias com relação aos seus aspectos éticos e
doutrinários.
Por
exemplo, a realização de bingos, loterias, rifas e outras formas de
arrecadação que se assemelhem a jogos de azar têm a sua
legitimidade questionada como prática em uma organização espírita.
A venda de bebidas alcoólicas, ainda que controlada para maiores de
idade em eventos e atividades festivas, também são criticadas. A
comercialização de pinturas e de outras formas de manifestação
artísticas mediúnicas recebem, também, questionamentos sobre sua
pertinência.
Em
documento publicado em 2007 pelo Conselho Federativo Nacional,
entidade que reúne as federativas espíritas de todos os estados
brasileiros, recomenda-se “evitar o uso de tômbolas, bingos,
rifas... ou outros meios desaconselháveis ante a Doutrina Espírita”
(Orientação ao centro espírita – Cap. IX, i. 6).
Objetivando
verificar o posicionamento sobre essa temática, o Departamento de
Doutrina da União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo
(USE) promoveu em agosto de 2019, junto aos dirigentes de centros e
órgãos representativos paulistas, um levantamento para se
identificar as principais práticas adotadas e aquelas consideradas
inapropriadas para a captação de recursos financeiros. Para tanto,
foi utilizada uma amostra por conveniência, com a participação de
204 respondentes, os quais acessaram um questionário eletrônico com
7 perguntas.
Os
dirigentes atuantes no mesmo centro espírita foram aglutinados,
mantendo-se as informações coincidentes e contados apenas uma vez
por casa. Após esse procedimento, contaram-se 156 representantes de
casas espíritas.
Considerando-se
tratar de amostra não probabilística, os resultados comentados a
seguir serão utilizados apenas para registro de ocorrências e
motivação para argumentação conceitual, sem a pretensão de
generalização.
2.
Características dos centros espíritas
A
maioria (53%) dos respondentes atua como dirigente em centros
espíritas com mais de 40 anos de fundação, seguida pelo grupo
composto por dirigentes de instituições criadas há mais de 20 anos
e menos de 40 anos (36%).
Cerca
de 8% dos dirigentes que participaram deste levantamento atuam em
casas espíritas fundadas entre 10 e 20 anos e apenas 3% atuam em
centros espíritas com menos de 10 anos de criação.
Considerando
este perfil, pode-se supor que as respostas a seguir expressam a
cultura de organizações consolidadas com significativas e exitosas
experiências em ações de captação de recursos.
3.
Principais fontes de captação de recursos
Os
respondentes relataram diferentes e simultâneas fontes de captação
de recursos, sendo que as principais foram Associados (83%), Eventos
específicos, como “noite da pizza” etc. (71%) e Bazar ou venda
de mercadorias (61%).
Outras
fontes relevantes foram Livrarias e/ou clube do livro (43%) e
Solicitações de doações aos frequentadores (34%). Destaca-se que,
na alternativa “outros” (11%), foram citados alugueis de imóveis,
comercialização de produtos de consumo e recursos oriundos da Nota
Fiscal Paulista.
Com
menor frequência foram apontados como fontes principais Convênios
com órgãos públicos (5%), Estacionamento (3%) e Telemarketing
(1%).
4. Práticas envolvendo jogos e sorteios
Cerca
de 43% dos respondentes afirmaram que não se adotam nem consideram
provável a adoção em suas instituições de práticas de captação
relacionadas a jogos de azar, tais como bingos, sorteios, rifas ou
qualquer outro em que se dependa da probabilidade de acerto para
haver um ganhador em detrimento de um ou mais perdedores.
Por
outro lado, 28% dos respondentes afirmaram que nos respectivos
centros espíritas jogos e sorteios são práticas comuns,
realizadas, ao menos, uma vez por ano.
Segundo
14% dos dirigentes, no passado as casas espíritas em que atuam já
realizaram este tipo de captação, mas que não realizam mais.
Raramente,
foi a resposta de 10% dos participantes do levantamento.
Os
demais 5% correspondem a manifestação de respondentes detalhando as
práticas que realizam envolvendo jogos e sorteios, portanto podem
ser somados ao grupo que considera uma prática comum em suas casas.
5.
Comercialização de bebidas alcoólicas em eventos
Para
77% dos respondentes, não é aceita a comercialização de bebidas
alcoólicas em eventos organizados pela instituição espírita.
Somam-se a esse grupo 5% de dirigentes que optaram por assinalar
“outros” no questionário, mas apenas para externalizarem que não
compactuam com esse tipo de prática, então, totaliza-se 82% de
respondentes cujas casas espíritas não realizam nem aceitam essa
prática.
Em
contraste, para 14% é aceita a venda para adultos. Outros 4%
afirmaram que é aceitável desde que não seja no próprio local do
centro espírita.
6.
Solicitação de doações nas palestras públicas
Para 46% dos respondentes, os respectivos centros espíritas não
costumam solicitar doações nas palestras públicas, mas para 47%,
suas casas espíritas possuem o hábito de realizar essas
solicitações.
Os demais 7% relataram solicitar somente por anúncios e avisos nos
murais e não nas palestras públicas.
7.
Venda de telas ou quadros mediúnicos
Cerca
de 66% dos respondentes
sinalizaram que as
respectivas casas não comercializaram nem pretendem comercializar
telas ou quadros supostamente mediúnicos.
Segundo 21% dos dirigentes consultados, existe esta prática para a
captação de recursos.
Aproximadamente
9% alegaram desconhecer se esta prática ocorre em suas casas e o
restante 4% comentaram que no passado houve um ou dois casos em que
se recebeu um convidado para
palestra e no final foram vendidas suas obras psicopictográficas.
8.
Práticas inapropriadas
Nesta
questão, expressou-se a opinião pessoal do respondente, ainda que
ela possa divergir das práticas adotadas pela respectiva casa. Essa
situação é evidenciada na frequência de respostas contrárias à
comercialização de bebidas alcoólicas, pois 90% afirmaram não
considerá-la adequada, apesar de 14% das casas aceitarem tal
procedimento, conforme já
apontado no item 5. Assim,
supõe-se que 4% dos respondentes não compactuam integralmente com
tal venda, ainda que seja uma prática aceita na própria casa.
Em segundo lugar dentre as práticas mais inapropriadas está a
comercialização de livros que contenham desvios ou distorções
doutrinárias, com 76% de respostas, seguida pela realização de
jogos ou sorteios (63%).
Cerca
de 52% não consideram apropriadas a venda de pinturas ou desenhos
supostamente mediúnicos.
9.
Considerações gerais
Sob
a perspectiva da sustentabilidade das organizações, o planejamento
financeiro é uma ação crítica e exige conhecimento administrativo
lastreado em aspectos éticos.
A
autonomia administrativa inerente a cada instituição espírita
permite a análise de posturas
ora convergentes, ora divergentes do entendimento geral das
práticas mais comuns e consideradas
apropriadas para a
necessária captação de recursos.
Constata-se
que a postura de alguns
dirigentes, ainda que minoria, conflita eticamente com a maioria com
relação às práticas de comercialização de bebidas alcoólicas e
promoção de jogos e sorteios.
Por
decisão unânime, o Conselho Federativo Nacional publicou,
em 2007, um documento formal
assinado pelos
representantes das entidades
espíritas estaduais a
não promoverem vendas
de bebidas alcoólicas, jogos e sorteios, dentre outros procedimentos
para captação de recursos financeiros que contrariam princípios e
valores espíritas.
Alguns
respondentes deste levantamento sinalizaram que se a comercialização
de tais produtos, considerados drogas lícitas (cerveja, vinho etc.),
ocorrerem em eventos fora da instituição espírita, mas promovidos
por ela, então poderiam ser aceitos. Os fins justificariam os meios.
Essa postura carrega uma contradição ética ao incentivar o consumo
de drogas lícitas em eventos organizados ou apoiados pela casa
espírita, a qual deveria, supostamente, cuidar do corpo e do
Espírito.
É
compreensível a existência de diferentes níveis de maturidade
moral e doutrinária entre os adeptos, gerando posicionamentos
antagônicos em algumas situações, porém, cabe aos dirigentes de
instituições espíritas e às entidades federativas a orientação
segura e formação de ambientes adequados para a reflexão crítica
sobre quais as práticas estariam coerentemente alinhadas aos
ensinamentos dos Espíritos apresentados por Allan Kardec.
Se,
por um lado, é de responsabilidade da própria casa espírita a
adoção de práticas, ainda que lamentavelmente estranhas ao
Espiritismo, é fundamental que a USE e seus órgãos administrativos
prezem pelo esclarecimento
fraterno, mas claro e objetivo, sobre práticas adequadas e
inadequadas às instituições espíritas.
Especificamente, não há como considerar apropriada a
comercialização de drogas lícitas em qualquer evento organizado ou
apoiado por entidades espíritas, bem como deve-se desincentivar a
arrecadação por meio de jogos de azar e sorteios de qualquer
espécie sob a justificativa financeira.
A
obtenção de recursos mediante a venda de produtos mediúnicos, como
pinturas e desenhos, não encontra uma aceitação plena, havendo
divisão de opiniões nesse sentido. A intenção é meritória,
porém os cuidados envolvidos nesse processo devem ser atentados.
Inicialmente, não se pode ter certeza de que se trata de
manifestação mediúnica e a comercialização de algo que não
corresponderia às expectativas do cliente pode ter implicações
jurídicas. Mesmo que fosse mediúnico, quando assinado por suposto
artista famoso, também poderiam ocorrer problemas legais.
A
comercialização de livros com conteúdo doutrinário distorcido
também contou com a reprovação da maioria dos dirigentes. Os
desafios financeiros podem fazer com que a casa espírita torne-se
mais permissiva quanto à qualidade das obras comercializadas em suas
respectivas livrarias, mas novamente evoca-se a responsabilidade
inerente ao cargo que todos os dirigentes deveriam ter com relação
à divulgação sincera e coerente dos princípios espíritas.
Alguns, irresponsavelmente, optam
pelo discurso de que tudo deve ser vendido na casa espírita e
caberia ao leitor separar o joio do trigo. Como assevera Herculano
Pires:
É legitima caridade repelir
todas essas fantasias em nome da verdade, mesmo que isso magoe alguns
companheiros iludidos. A tolerância comodista dos que veem o erro e
se calam é crime que terá de ser pago no futuro. Quem compactua com
o erro para não criar problemas está, sem o saber, enleando-se nas
teias sombrias da mentira, compromissando-se com os mentirosos.
(Curso Dinâmico de Espiritismo, 2000, p. 151)
Outubro/ 2019
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