segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Captação de recursos em centros espíritas



UNIÃO DAS SOCIEDADES ESPÍRITAS DO ESTADO DE SÃO PAULO
Departamento de Doutrina


Captação de recursos em centros espíritas
Levantamento realizado em ago/19

Marco Milani

1. Introdução

Um dos principais desafios de qualquer dirigente de centro espírita é a manutenção e o desenvolvimento das respectivas atividades, pois exige recursos de diferentes naturezas, inclusive financeiros.

Já no século XIX, Allan Kardec, conhecedor da necessidade do planejamento financeiro baseado na prudência, ao discorrer sobre as características da Comissão Central do Espiritismo (ver Obras Póstumas – 2ª parte), sabiamente alerta para não se tentar cobrir despesas fixas com recursos eventuais, pois no longo prazo essa medida prejudicaria a sustentabilidade da organização. Trata-se de uma regra de ouro para qualquer administrador, tanto do passado quanto dos dias atuais.

Kardec sinalizou que as despesas deveriam ser compatíveis com o volume de receitas recebidas, ou seja, primeiro verifica-se o volume de recursos disponíveis para somente depois se assumir compromissos com gastos, preservando a continuidade operacional das atividades. A estrutura da organização seria proporcional à sua capacidade de geração de renda.

Em momento algum Allan Kardec sugere inverter essa relação de prudência material, supondo que os gastos seriam cobertos por alguma ação divina no futuro, como infelizmente podem supor aqueles que cegamente confiam em soluções mágicas e não estão familiarizados com técnicas administrativas.

No Brasil, constatam-se diferentes práticas nas instituições espíritas para a captação de recursos, tanto aquelas que geram rendas de maneira mais perene, assim como aquelas decorrentes de eventos pontuais. Muitas dessas práticas são bastante disseminadas e plenamente aderentes aos princípios e valores espíritas. Algumas, entretanto, ainda que estejam em conformidade legal, despertam controvérsias com relação aos seus aspectos éticos e doutrinários.

Por exemplo, a realização de bingos, loterias, rifas e outras formas de arrecadação que se assemelhem a jogos de azar têm a sua legitimidade questionada como prática em uma organização espírita. A venda de bebidas alcoólicas, ainda que controlada para maiores de idade em eventos e atividades festivas, também são criticadas. A comercialização de pinturas e de outras formas de manifestação artísticas mediúnicas recebem, também, questionamentos sobre sua pertinência.

Em documento publicado em 2007 pelo Conselho Federativo Nacional, entidade que reúne as federativas espíritas de todos os estados brasileiros, recomenda-se “evitar o uso de tômbolas, bingos, rifas... ou outros meios desaconselháveis ante a Doutrina Espírita” (Orientação ao centro espírita – Cap. IX, i. 6).

Objetivando verificar o posicionamento sobre essa temática, o Departamento de Doutrina da União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo (USE) promoveu em agosto de 2019, junto aos dirigentes de centros e órgãos representativos paulistas, um levantamento para se identificar as principais práticas adotadas e aquelas consideradas inapropriadas para a captação de recursos financeiros. Para tanto, foi utilizada uma amostra por conveniência, com a participação de 204 respondentes, os quais acessaram um questionário eletrônico com 7 perguntas.

Os dirigentes atuantes no mesmo centro espírita foram aglutinados, mantendo-se as informações coincidentes e contados apenas uma vez por casa. Após esse procedimento, contaram-se 156 representantes de casas espíritas.

Considerando-se tratar de amostra não probabilística, os resultados comentados a seguir serão utilizados apenas para registro de ocorrências e motivação para argumentação conceitual, sem a pretensão de generalização.


2. Características dos centros espíritas

A maioria (53%) dos respondentes atua como dirigente em centros espíritas com mais de 40 anos de fundação, seguida pelo grupo composto por dirigentes de instituições criadas há mais de 20 anos e menos de 40 anos (36%).

Cerca de 8% dos dirigentes que participaram deste levantamento atuam em casas espíritas fundadas entre 10 e 20 anos e apenas 3% atuam em centros espíritas com menos de 10 anos de criação.

Considerando este perfil, pode-se supor que as respostas a seguir expressam a cultura de organizações consolidadas com significativas e exitosas experiências em ações de captação de recursos.



3. Principais fontes de captação de recursos

Os respondentes relataram diferentes e simultâneas fontes de captação de recursos, sendo que as principais foram Associados (83%), Eventos específicos, como “noite da pizza” etc. (71%) e Bazar ou venda de mercadorias (61%).

Outras fontes relevantes foram Livrarias e/ou clube do livro (43%) e Solicitações de doações aos frequentadores (34%). Destaca-se que, na alternativa “outros” (11%), foram citados alugueis de imóveis, comercialização de produtos de consumo e recursos oriundos da Nota Fiscal Paulista.

Com menor frequência foram apontados como fontes principais Convênios com órgãos públicos (5%), Estacionamento (3%) e Telemarketing (1%).

























4. Práticas envolvendo jogos e sorteios

Cerca de 43% dos respondentes afirmaram que não se adotam nem consideram provável a adoção em suas instituições de práticas de captação relacionadas a jogos de azar, tais como bingos, sorteios, rifas ou qualquer outro em que se dependa da probabilidade de acerto para haver um ganhador em detrimento de um ou mais perdedores.

Por outro lado, 28% dos respondentes afirmaram que nos respectivos centros espíritas jogos e sorteios são práticas comuns, realizadas, ao menos, uma vez por ano.

Segundo 14% dos dirigentes, no passado as casas espíritas em que atuam já realizaram este tipo de captação, mas que não realizam mais.

Raramente, foi a resposta de 10% dos participantes do levantamento.

Os demais 5% correspondem a manifestação de respondentes detalhando as práticas que realizam envolvendo jogos e sorteios, portanto podem ser somados ao grupo que considera uma prática comum em suas casas.


5. Comercialização de bebidas alcoólicas em eventos

Para 77% dos respondentes, não é aceita a comercialização de bebidas alcoólicas em eventos organizados pela instituição espírita. Somam-se a esse grupo 5% de dirigentes que optaram por assinalar “outros” no questionário, mas apenas para externalizarem que não compactuam com esse tipo de prática, então, totaliza-se 82% de respondentes cujas casas espíritas não realizam nem aceitam essa prática.

Em contraste, para 14% é aceita a venda para adultos. Outros 4% afirmaram que é aceitável desde que não seja no próprio local do centro espírita.


6. Solicitação de doações nas palestras públicas

Para 46% dos respondentes, os respectivos centros espíritas não costumam solicitar doações nas palestras públicas, mas para 47%, suas casas espíritas possuem o hábito de realizar essas solicitações.

Os demais 7% relataram solicitar somente por anúncios e avisos nos murais e não nas palestras públicas.


7. Venda de telas ou quadros mediúnicos

Cerca de 66% dos respondentes sinalizaram que as respectivas casas não comercializaram nem pretendem comercializar telas ou quadros supostamente mediúnicos.

Segundo 21% dos dirigentes consultados, existe esta prática para a captação de recursos.

Aproximadamente 9% alegaram desconhecer se esta prática ocorre em suas casas e o restante 4% comentaram que no passado houve um ou dois casos em que se recebeu um convidado para palestra e no final foram vendidas suas obras psicopictográficas.


8. Práticas inapropriadas

Nesta questão, expressou-se a opinião pessoal do respondente, ainda que ela possa divergir das práticas adotadas pela respectiva casa. Essa situação é evidenciada na frequência de respostas contrárias à comercialização de bebidas alcoólicas, pois 90% afirmaram não considerá-la adequada, apesar de 14% das casas aceitarem tal procedimento, conforme já apontado no item 5. Assim, supõe-se que 4% dos respondentes não compactuam integralmente com tal venda, ainda que seja uma prática aceita na própria casa.

Em segundo lugar dentre as práticas mais inapropriadas está a comercialização de livros que contenham desvios ou distorções doutrinárias, com 76% de respostas, seguida pela realização de jogos ou sorteios (63%).

Cerca de 52% não consideram apropriadas a venda de pinturas ou desenhos supostamente mediúnicos.


9. Considerações gerais

Sob a perspectiva da sustentabilidade das organizações, o planejamento financeiro é uma ação crítica e exige conhecimento administrativo lastreado em aspectos éticos.

A autonomia administrativa inerente a cada instituição espírita permite a análise de posturas ora convergentes, ora divergentes do entendimento geral das práticas mais comuns e consideradas apropriadas para a necessária captação de recursos.

Constata-se que a postura de alguns dirigentes, ainda que minoria, conflita eticamente com a maioria com relação às práticas de comercialização de bebidas alcoólicas e promoção de jogos e sorteios.

Por decisão unânime, o Conselho Federativo Nacional publicou, em 2007, um documento formal assinado pelos representantes das entidades espíritas estaduais a não promoverem vendas de bebidas alcoólicas, jogos e sorteios, dentre outros procedimentos para captação de recursos financeiros que contrariam princípios e valores espíritas.

Alguns respondentes deste levantamento sinalizaram que se a comercialização de tais produtos, considerados drogas lícitas (cerveja, vinho etc.), ocorrerem em eventos fora da instituição espírita, mas promovidos por ela, então poderiam ser aceitos. Os fins justificariam os meios. Essa postura carrega uma contradição ética ao incentivar o consumo de drogas lícitas em eventos organizados ou apoiados pela casa espírita, a qual deveria, supostamente, cuidar do corpo e do Espírito.

É compreensível a existência de diferentes níveis de maturidade moral e doutrinária entre os adeptos, gerando posicionamentos antagônicos em algumas situações, porém, cabe aos dirigentes de instituições espíritas e às entidades federativas a orientação segura e formação de ambientes adequados para a reflexão crítica sobre quais as práticas estariam coerentemente alinhadas aos ensinamentos dos Espíritos apresentados por Allan Kardec.

Se, por um lado, é de responsabilidade da própria casa espírita a adoção de práticas, ainda que lamentavelmente estranhas ao Espiritismo, é fundamental que a USE e seus órgãos administrativos prezem pelo esclarecimento fraterno, mas claro e objetivo, sobre práticas adequadas e inadequadas às instituições espíritas.

Especificamente, não há como considerar apropriada a comercialização de drogas lícitas em qualquer evento organizado ou apoiado por entidades espíritas, bem como deve-se desincentivar a arrecadação por meio de jogos de azar e sorteios de qualquer espécie sob a justificativa financeira.

A obtenção de recursos mediante a venda de produtos mediúnicos, como pinturas e desenhos, não encontra uma aceitação plena, havendo divisão de opiniões nesse sentido. A intenção é meritória, porém os cuidados envolvidos nesse processo devem ser atentados. Inicialmente, não se pode ter certeza de que se trata de manifestação mediúnica e a comercialização de algo que não corresponderia às expectativas do cliente pode ter implicações jurídicas. Mesmo que fosse mediúnico, quando assinado por suposto artista famoso, também poderiam ocorrer problemas legais.

A comercialização de livros com conteúdo doutrinário distorcido também contou com a reprovação da maioria dos dirigentes. Os desafios financeiros podem fazer com que a casa espírita torne-se mais permissiva quanto à qualidade das obras comercializadas em suas respectivas livrarias, mas novamente evoca-se a responsabilidade inerente ao cargo que todos os dirigentes deveriam ter com relação à divulgação sincera e coerente dos princípios espíritas.

Alguns, irresponsavelmente, optam pelo discurso de que tudo deve ser vendido na casa espírita e caberia ao leitor separar o joio do trigo. Como assevera Herculano Pires:

É legitima caridade repelir todas essas fantasias em nome da verdade, mesmo que isso magoe alguns companheiros iludidos. A tolerância comodista dos que veem o erro e se calam é crime que terá de ser pago no futuro. Quem compactua com o erro para não criar problemas está, sem o saber, enleando-se nas teias sombrias da mentira, compromissando-se com os mentirosos. (Curso Dinâmico de Espiritismo, 2000, p. 151)




Outubro/ 2019

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