quarta-feira, 21 de julho de 2021

Pureza ou Coerência Doutrinária?

 

Pureza ou Coerência Doutrinária?

 

Marco Milani

 

(Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed.184, p.22)

Ao se adotar a definição de pureza como a qualidade daquilo que é livre de alterações e não esteja contaminado ou misturado com elementos estranhos, assume-se a presunção de essência impoluta e imaculada. Como já tenha atingido o estado de pureza, inexistiria, portanto, necessidade de maior limpeza ou de aprimoramento.

 Desde o lançamento do livro Pureza Doutrinária, em 1988, de Ary Lex, o termo popularizou-se para representar a noção de apreço e manutenção dos princípios e valores espíritas contra as tentativas de adoção de ideias e conceitos estranhos, principalmente orientalistas e de conotação mística e supersticiosa, que colidiam ou desvirtuavam a interpretação dos ensinos dos Espíritos apresentados por Allan Kardec.

Lex pretendeu explicitar e aplicar a conduta prudente e zelosa que o próprio Kardec recomendou aos adeptos sinceros, conforme encontra-se no texto intitulado Nova tática dos adversários do Espiritismo, publicado em junho de 1865 na Revista Espírita. A seguir, um trecho selecionado:

 

“É, pois, um dever de todos os espíritas sinceros e devotados repudiar e desautorizar abertamente, em seu nome, os abusos de todo gênero que pudessem comprometê-la, a fim de não lhes assumir a responsabilidade; pactuar com os abusos seria tornar-se cúmplice e fornecer armas aos nossos adversários.” (Allan Kardec)


 No Brasil, pode-se destacar eminentes divulgadores espíritas, como Herculano Pires, Deolindo Amorim, Carlos Imbassahy, dentre outros, que também enfatizaram a necessidade de se identificar e combater as distorções conceituais e o sincretismo decorrentes de interpretações equivocadas dos princípios doutrinários. Eles não se serviam do termo “pureza”, mas a proposta de valorização da essência espírita refletia a mesma intenção de Ary Lex com a obra citada.

Considerando que o Movimento Espírita Brasileiro não é formado por um grupo homogêneo de pessoas com relação ao grau de conhecimento e aplicação dos princípios doutrinários, o termo “pureza doutrinária” foi, como esperado, interpretado de diferentes maneiras e despertou reações variadas.

Diretamente relacionadas à capacidade de alguém para entender a recomendação de Kardec sobre a necessidade de repúdio e desautorização de abusos que pudessem comprometer a lógica e consistência interna do corpo teórico do Espiritismo, as opiniões sobre a pertinência e o uso do termo “pureza” até hoje geram divergências.

Um dos principais problemas interpretativos encontrados é a suposição de que o conhecimento espírita está acabado, pois já teria se atingido o grau de sublimação conceitual máximo (a essência pura). Em sentido oposto e igualmente prejudicial está a suposição de que os ensinos dos Espíritos estão desatualizados e foram superados por novas revelações, as quais não passaram por qualquer critério fundamentado de validação. Ao se acreditar ingenuamente que revelações que reformulam os princípios apresentados por Kardec são pertinentes simplesmente porque foram recebidas e divulgadas por pessoas aparentemente ilibadas e de confiança, frequentemente munem os adversários e expõem o Espiritismo ao ridículo.

Assim, se por um lado não se deve negar o dinamismo do conhecimento previsto por Kardec, tendo a ciência um papel fundamental nesse avanço, por outro lado não se pode assumir a postura inconsequente de tudo se aceitar, mesmo sem evidência e fatos objetivos, com propensão ao misticismo e à superstição.

Como o conhecimento evolui, o conceito de pureza fragiliza-se diante da possibilidade de eventuais alterações no corpo doutrinário, mas não significa que a proposta original de manutenção da racionalidade e lógica deva ser alterada. Um termo capaz de unir a solidez dos princípios, mas que admite a evolução conceitual baseada em critérios adequadamente fundamentados, é “coerência doutrinária”.  

De origem latina, a palavra coerência significa conexão ou coesão. De forma geral, implica nexo e uniformidade de um conjunto de ideias. Alguém que seja coerente expressa-se de maneira lógica, capaz de permitir aos seus interlocutores a compreensão clara e sem contradições sobre seu discurso ou atitudes.

O verdadeiro adepto compreende e exemplifica a Doutrina dos Espíritos, devidamente apresentada nas obras de Allan Kardec e acompanha a evolução da ciência como caminho necessário ao desenvolvimento do conhecimento humano.

Não somente dirigentes, mas qualquer um que se proponha a expor e orientar sobre os ensinamentos dos Espíritos assume responsabilidade sobre suas atitudes. Palestrantes, escritores e instrutores são vistos, pelo público em geral, como representantes do Espiritismo.

Um dos desafios a serem superados é praticar o distanciamento necessário entre o conteúdo doutrinário e eventuais opiniões desprovidas de fundamentação, mesmo que com roupagem científica. Diante de questões polêmicas ou que costumam envolver posicionamentos apaixonados, não é incomum que aqueles com menor maturidade doutrinária misturem em seus discursos opiniões pessoais e afirmem se tratar de ensinamentos espíritas, desvirtuando o compromisso ético com o próprio Espiritismo.

Ser coerente não significa que não se possa questionar ou discordar dos Espíritos, porém a Doutrina Espírita foi estruturada com inegável robustez e a universalidade dos ensinos dos Espíritos lhe confere legitimidade metodológica, portanto não basta alguém abraçar ideias antagônicas sem evidenciação e sem validação por diferentes fontes para se substituir aquelas já existentes na Codificação e achar que está revolucionando a interpretação da realidade.

A coerência doutrinária é, primordialmente, um compromisso com a verdade baseada na razão e em fatos, mostrando-se um termo mais amplo e adequado do que pureza, ainda que ambos busquem valorizar os ensinos dos Espíritos.



Um comentário:

  1. Excelente post. Assisti também a live de hoje sobre o mesmo assunto. Muito boa e coerente com o aprendizado...

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