Pureza ou Coerência Doutrinária?
Marco Milani
Ao se adotar a definição de pureza como a qualidade
daquilo que é livre de alterações e não esteja contaminado ou misturado com
elementos estranhos, assume-se a presunção de essência impoluta e imaculada.
Como já tenha atingido o estado de pureza, inexistiria, portanto, necessidade
de maior limpeza ou de aprimoramento.
Desde o
lançamento do livro Pureza Doutrinária, em 1988, de Ary Lex, o termo
popularizou-se para representar a noção de apreço e manutenção dos princípios e
valores espíritas contra as tentativas de adoção de ideias e conceitos
estranhos, principalmente orientalistas e de conotação mística e supersticiosa,
que colidiam ou desvirtuavam a interpretação dos ensinos dos Espíritos
apresentados por Allan Kardec.
Lex pretendeu explicitar e aplicar a conduta
prudente e zelosa que o próprio Kardec recomendou aos adeptos sinceros, conforme
encontra-se no texto intitulado Nova tática dos adversários do Espiritismo,
publicado em junho de 1865 na Revista Espírita. A seguir, um trecho
selecionado:
“É, pois, um dever de todos os espíritas sinceros e
devotados repudiar e desautorizar abertamente, em seu nome, os abusos de todo
gênero que pudessem comprometê-la, a fim de não lhes assumir a
responsabilidade; pactuar com os abusos seria tornar-se cúmplice e fornecer
armas aos nossos adversários.” (Allan Kardec)
Considerando que o Movimento Espírita Brasileiro
não é formado por um grupo homogêneo de pessoas com relação ao grau de
conhecimento e aplicação dos princípios doutrinários, o termo “pureza
doutrinária” foi, como esperado, interpretado de diferentes maneiras e
despertou reações variadas.
Diretamente relacionadas à capacidade de alguém
para entender a recomendação de Kardec sobre a necessidade de repúdio e
desautorização de abusos que pudessem comprometer a lógica e consistência
interna do corpo teórico do Espiritismo, as opiniões sobre a pertinência e o
uso do termo “pureza” até hoje geram divergências.
Um dos principais problemas interpretativos
encontrados é a suposição de que o conhecimento espírita está acabado, pois já
teria se atingido o grau de sublimação conceitual máximo (a essência pura). Em
sentido oposto e igualmente prejudicial está a suposição de que os ensinos dos
Espíritos estão desatualizados e foram superados por novas revelações, as quais
não passaram por qualquer critério fundamentado de validação. Ao se acreditar
ingenuamente que revelações que reformulam os princípios apresentados por
Kardec são pertinentes simplesmente porque foram recebidas e divulgadas por
pessoas aparentemente ilibadas e de confiança, frequentemente munem os
adversários e expõem o Espiritismo ao ridículo.
Assim, se por um lado não se deve negar o dinamismo
do conhecimento previsto por Kardec, tendo a ciência um papel fundamental nesse
avanço, por outro lado não se pode assumir a postura inconsequente de tudo se
aceitar, mesmo sem evidência e fatos objetivos, com propensão ao misticismo e à
superstição.
Como o conhecimento evolui, o conceito de pureza
fragiliza-se diante da possibilidade de eventuais alterações no corpo
doutrinário, mas não significa que a proposta original de manutenção da
racionalidade e lógica deva ser alterada. Um termo capaz de unir a solidez dos princípios,
mas que admite a evolução conceitual baseada em critérios adequadamente
fundamentados, é “coerência doutrinária”.
De origem latina, a palavra coerência significa
conexão ou coesão. De forma geral, implica nexo e uniformidade de um conjunto
de ideias. Alguém que seja coerente expressa-se de maneira lógica, capaz de
permitir aos seus interlocutores a compreensão clara e sem contradições sobre
seu discurso ou atitudes.
O verdadeiro adepto compreende e exemplifica a
Doutrina dos Espíritos, devidamente apresentada nas obras de Allan Kardec e
acompanha a evolução da ciência como caminho necessário ao desenvolvimento do
conhecimento humano.
Não somente dirigentes, mas qualquer um que se
proponha a expor e orientar sobre os ensinamentos dos Espíritos assume
responsabilidade sobre suas atitudes. Palestrantes, escritores e instrutores
são vistos, pelo público em geral, como representantes do Espiritismo.
Um dos desafios a serem superados é praticar o
distanciamento necessário entre o conteúdo doutrinário e eventuais opiniões
desprovidas de fundamentação, mesmo que com roupagem científica. Diante de
questões polêmicas ou que costumam envolver posicionamentos apaixonados, não é
incomum que aqueles com menor maturidade doutrinária misturem em seus discursos
opiniões pessoais e afirmem se tratar de ensinamentos espíritas, desvirtuando o
compromisso ético com o próprio Espiritismo.
Ser coerente não significa que não se possa
questionar ou discordar dos Espíritos, porém a Doutrina Espírita foi
estruturada com inegável robustez e a universalidade dos ensinos dos Espíritos
lhe confere legitimidade metodológica, portanto não basta alguém abraçar ideias
antagônicas sem evidenciação e sem validação por diferentes fontes para se
substituir aquelas já existentes na Codificação e achar que está revolucionando
a interpretação da realidade.
A coerência doutrinária é, primordialmente, um
compromisso com a verdade baseada na razão e em fatos, mostrando-se um termo
mais amplo e adequado do que pureza, ainda que ambos busquem valorizar os
ensinos dos Espíritos.
Excelente post. Assisti também a live de hoje sobre o mesmo assunto. Muito boa e coerente com o aprendizado...
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