A introspecção e o autoconhecimento
Marco Milani
(Texto publicado na
Revista Dirigente Espírita, ed. 196, jul-ago/2023, p.32)
Allan Kardec, em O evangelho segundo o
Espiritismo, no capítulo Sede Perfeitos, asseverou que o verdadeiro espírita
é conhecido pelos esforços que emprega no domínio de suas más inclinações e por
sua transformação moral. Neste mesmo capítulo em que se encontra esta exortação
basilar, aprendemos que a virtude é o conjunto das qualidades essenciais
do homem de bem em seu mais alto grau. Por conseguinte, o combate aos vícios e
o desenvolvimento das virtudes são uns dos principais deveres de todo espírita
sincero. Mas como fazê-lo?
O codificador, preocupado em saber como na
prática a transformação moral pode ser feita, interrogou os benfeitores
espirituais a respeito, na questão 919 de O Livro dos Espíritos. Em
resposta ao mestre lionês, Santo Agostinho, renomado filósofo e teólogo da
cristandade medieval, nos ensinou que o autoconhecimento é considerado o meio
prático e mais eficaz que tem o homem de se melhorar nesta vida e de resistir à
atração do mal.
O autoconhecimento, conforme descreveu o amigo
espiritual, é o exame de consciência, ao passar em revista as ações do dia, no
sentido de avaliar o bem e o mal praticado. Esse é um método filosófico de
auto-observação denominado introspecção, uma atitude reflexiva que o indivíduo
tem sobre si, sobre o que ocorre no seu íntimo, sobre suas experiências,
desejos e desafios.
Mas essa atitude de olhar para si próprio tem as
suas pré-condições. A primeira dela é a humildade, ao se reconhecer a necessidade
do autoaperfeiçoamento. Além disso, ela requer maturidade e coragem. Maturidade
para o exame profundo das causas e consequências dos próprios atos, emoções e
pensamentos. Coragem para confrontar-se consigo mesmo.
Em diferentes tradições e culturas, o
autoconhecimento é apontado como condição fundamental para se alcançar a
verdadeira sabedoria, tal como a inscrição no Portal de Delfos da antiga Grécia
que assevera a máxima que guiou Sócrates em sua atitude filosófica: “Ó homem,
conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo”.
Jesus, por sua vez, foi um dos maiores
divulgadores da proposta introspectiva ao ensinar à humanidade que o universo
interior deve ser descoberto e compreendido para se conseguir amar verdadeiramente
a si e ao próximo. Ao afirmar que não veio trazer a paz, mas a espada (Mt
10:34), Jesus nos oferece o símbolo da luta interior que devemos ter contra
nossas más inclinações e afasta a ilusória tranquilidade do conformismo íntimo
perante nossas mazelas morais. Esse é o “bom combate” que Paulo afirma ter
realizado (2 Timóteo 4:7).
No entanto, existem vários obstáculos que podem
dificultar o processo de autoconhecimento. Quando a pessoa não dedica tempo
para se autoavaliar, permanece inconsciente sobre suas emoções, pensamentos,
motivações, valores ou comportamentos, e então pode agir de forma condicionada,
sem refletir sobre suas ações ou suas consequências.
Uma vez que a introspecção envolve um olhar para
dentro de si mesmo, essa atitude pode ser intimidante para muitas pessoas. O
medo de confrontar emoções desconfortáveis, traumas passados ou aspectos
negativos de si mesmo pode impedir o progresso no autoconhecimento. Por isso, é
fundamental uma postura de autoacolhimento e autoaceitação, permitindo que o
processo ocorra com naturalidade e sem entraves desnecessários.
Por outro lado, atitudes escapistas podem
ocorrer, por meio de distorções cognitivas que prejudicam a compreensão objetiva
da realidade, como por exemplo, o viés de confirmação – ao se dar mais
importância a informações que confirmam nossas crenças e desconsiderar aquelas que
as questionam, ou pelo autoengano ou racionalização, obstáculos muito comuns à
introspecção.
Outro fator prejudicial são as expectativas e
opiniões de outras pessoas que podem influenciar a percepção de si mesmo. As pressões
sociais, as normas culturais e as comparações com os outros acabam por
distorcer a própria imagem e impedir o autoconhecimento.
A resistência à mudança, por vezes, reflete o
medo do desconhecido ou o desejo de manutenção de padrões familiares, o que
dificulta o progresso na busca do autodescobrimento, assim como a autocrítica
severa pode minar a capacidade de superação e levar à falta de confiança.
Transpor esses obstáculos requer tempo, esforço
e autodisciplina, mas isso não deve se tornar um motivo para o desalento ou
desânimo. Graças aos ensinamentos da Doutrina Espírita dispomos, de maneira
clara e objetiva, dos elementos essenciais para a compreensão de nossa natureza
espiritual e do roteiro seguro para a verdadeira descoberta interior.
“Vencer a si mesmo é a maior vitória que alguém
pode obter”, conforme afirmou Platão em A República, no Livro VII.
É pelo desenvolvimento moral e intelectual,
expressos em obras e não apenas na fé, que venceremos o bom combate contra o
orgulho e o egoísmo, as verdadeiras chagas do homem.
Fonte: https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2023/08/reDE-196-julho-agosto-2023.pdf
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