domingo, 2 de janeiro de 2022

A prudência perante questões controversas

 


A prudência perante questões controversas

 Marco Milani

 (Texto publicado na revista Dirigente Espírita, ed. 187, pp. 43 a 45)


            Ao discorrer sobre o porquê do Espiritismo não se posicionar abertamente sobre questões controversas, que podem parecer claras e resolvidas para uns, mas não para todos, Allan Kardec destaca a relevância da prudência.

Assim ocorreu com relação à teoria da geração espontânea, a qual se propunha a explicar a formação de determinados seres vivos nos reinos vegetal e animal. Apresentada na obra A Gênese como uma hipótese corroborada por alguns pesquisadores, enfatizou-se ser prematuro o seu apoio incondicional. Ao contrário, Kardec finaliza a abordagem desse tema recomendando legar ao tempo o aprofundamento científico adequado, caso algum dia ele possa ser devidamente investigado.1 Essa teoria não foi, portanto, um ensinamento doutrinário.

            O tempo demonstrou, de fato, que tal teoria era falsa. Graças aos trabalhos de diversos pesquisadores, dentre eles Louis Pasteur, os fatos observados seguindo-se métodos científicos com instrumentos mais modernos, ajudaram a aclarar diversos fenômenos. Essas revelações se deram pelo avanço da ciência e não por revelações mediúnicas.

            O respeito que Kardec possuía com o Espiritismo fez com que ele, mesmo tendo um olhar favorável à teoria, não misturasse sua opinião pessoal com o ensino doutrinário. Assim ele se manifestou:

 

“Não sendo a doutrina baseada em probabilidades, não podíamos resolver uma questão de tal importância, apenas surgida, e que ainda está em litígio entre os especialistas. Afirmando a coisa sem restrição, teria sido comprometer a doutrina prematuramente, o que não fazemos nunca, mesmo para fazer prevalecerem as nossas simpatias.” 2

 

            Kardec enfatiza que o Espiritismo não estabeleceu nenhum princípio absoluto sobre uma opinião particular, seja de encarnado ou desencarnado, mas “somente depois que esse princípio recebeu a consagração da experiência e de uma demonstração rigorosa, resolvendo todas as dificuldades da questão”. 2

            A mesma sensatez e prudência deveríamos aplicar, individualmente, quando expressamos algo sobre assuntos abertos, sem direcionamento fundamentado em fatos e na razão, apenas em hipóteses ou argumentação opinativa.

            Temas que claramente dependem de uma ampliação do conhecimento sobre a realidade espiritual e sobre o processo evolutivo do ser, ainda que delineados nas obras fundamentais do Espiritismo, não podem ser afoitamente concluídos por suposições ou hipóteses.

            Um claro exemplo de questões com essas características é a evolução das espécies orgânicas e do princípio inteligente. De maneira infundada, alguns adeptos supõem que todas as possibilidades de combinações materiais para a formação de corpos que o princípio inteligente se servirá para a continuidade de seu desenvolvimento espiritual estão representadas e restritas ao planeta Terra e desconsideram os infinitos planetas e ambientes no universo que esses corpos podem se formar. Em outras palavras, tentam atrelar a cadeia evolutiva do princípio inteligente, desde a sua criação até o momento que desperta para a razão e adentra na humanidade, a este minúsculo orbe e suas espécies do passado e do presente.

            A solidariedade entre todos os seres no universo faz com que se considere o processo evolutivo em todos os inúmeros planetas, não somente em um. Inútil tentar localizar na Terra um “elo perdido” que ligaria o animal mais desenvolvido com o homem mais primitivo sob a perspectiva espiritual, uma vez que os animais também estão presentes em mundos superiores e em estágios mais aperfeiçoados.3

            A afirmação de que não existem animais na erraticidade não é uma opinião, mas o produto de um ensino coletivo que foi registrado em diferentes passagens4, 5 e 6. As minúcias das etapas progressivas do princípio inteligente em outros e neste orbe, entretanto, fogem da compreensão atual e, nesse sentido, é imprudente tentar se fechar questão com os parcos conhecimentos atuais ou, de maneira mais ilógica, contestar a afirmação presente nas obras fundamentais sem qualquer evidência, a não ser opiniões.

            As precipitações teóricas decorrem, muitas vezes, do desejo do desbravamento sem método, em que novidades e supostas revelações mediúnicas são abraçadas afoitamente, sem o zelo da atenção e análise crítica. A história aponta que o tempo de maturação das ideias pode levar anos, séculos ou milênios, dependendo da capacidade de compreensão do homem.

Há pelo menos dois mil anos que a referência sobre o que seja amar o próximo foi apresentada, mas ainda engatinha-se nessa vivência. O progresso pode ser imperceptível para uma geração, mas é paulatino e constante sob a perspectiva espiritual.

Como frisou o Espírito da Verdade, o amor e a instrução devem ser os mandamentos a serem seguidos7. Nem um, nem outro, isoladamente. Ambos devem ser entendidos e praticados.

O conhecimento da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal deve ser conquistado conforme a capacidade e esforço do homem.

            Hipóteses são bem-vindas, pois ajudam a exercitar a inteligência, mas a fé raciocinada exige, antes de tudo, prudência na aceitação e no estabelecimento de verdades.

 

Referências

1. Kardec, Allan. A Gênese. Capítulo X, itens 20 a 23.

2. Kardec, Allan. Revista Espírita. Jul/1868. A geração espontânea e A Gênese.

3. Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 603 e 604.

4. Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 600.

5. Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns. Capítulo XXV, item 283.

6. Kardec, Allan. Revista Espírita. Mai/1865.  Questões e problemas. Manifestação do espírito dos animais.

7. Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Capítulo VI, item 5.

 

Fonte: https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2022/01/DE187-C.pdf



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