segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Opinião e Razão

 

Opinião e Razão

Marco Milani


Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 192, nov/dez 2022, p. 16-17

                Allan Kardec, ao destacar que os Espíritos desencarnados, sobre muitos pontos, não emitiam mais do que as próprias opiniões[1] e que essas poderiam ser divergentes entre si, evidencia uma questão metodológica fundamental para a validação do conhecimento espírita: a concordância das informações obtidas por fontes independentes que não se influenciam mutuamente.

               Atualmente, considerando a rapidez que as informações se propagam no ambiente eletrônico, dificilmente grupos mediúnicos e seus componentes estão alheios ao que é divulgado nos diferentes meios de comunicação. Tratando-se de informação que colide com o ensino doutrinário apresentado nas obras de Allan Kardec, sua aceitação implica abandonar ou ignorar o conhecimento já firmado de maneira afoita e imponderada.

               Certamente, o Espiritismo é dinâmico e prevê o avanço desse conhecimento, porém em condições específicas que permitam validá-lo perante elementos objetivos, racionais e lógicos. Caso não existam evidências robustas, novas informações devem ser consideradas apenas hipóteses, sujeitas a validação futura e passíveis de questionamentos sobre a respectiva veracidade.

               A prudência na atitude científica marca a seriedade esperada dos pesquisadores. A aceitação cega de hipóteses, muitas vezes devido a aspectos emocionais e a interesses particulares, destoa da busca do conhecimento verdadeiro. Em contraposição, o relativismo irresponsável que flexibiliza a razão diante da inexistência de fatos comprobatórios e pelo uso de argumentos falaciosos para escamotear a realidade, presta um desserviço à busca da verdade.

               Com relação às informações produzidas mediunicamente, a prudência exige que o conteúdo seja analisado sob as lentes da razão, sem aceitação ou refutação prévia baseada na assinatura do suposto Espírito comunicante ou de quem seja o intermediário encarnado.

               Inexiste argumento de autoridade mediúnica, ou seja, a validade do conteúdo da mensagem independe da simpatia ou afeição que se possa ter pelo mensageiro. Se assim não fosse, Kardec não teria rejeitado várias comunicações com assinaturas veneráveis e obtidas pelos mesmos médiuns que colaboravam na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e intermediavam elevados ensinamentos de nobres Espíritos.[2]

               Encarnados devem passar pelo mesmo escrutínio. Ao ocupar uma tribuna ou expressar-se pela escrita na condição de um representante espírita, o conteúdo manifesto demanda análise criteriosa adotando como referência comparativa o conjunto de conhecimentos apresentados por Allan Kardec. Como assevera José Herculano Pires em sua obra A pedra e o joio, no Espiritismo a pedra de toque é a obra de Kardec.

               Ao revolucionar a proposta de geração de conhecimento sobre a realidade espiritual, o Espiritismo provoca uma ruptura cultural com o dogmatismo igrejeiro que se pressupunha monopolista da fé baseada em mistérios sagrados e aproxima-se da investigação científica lastreado em seu método investigativo.

A centralidade da epistemologia espírita situa-se na análise crítica e na concordância das informações reveladas via intercâmbio mediúnico, capazes de promover a consistência interna de seu arcabouço teórico-doutrinário que diferencia-se de qualquer outra proposta explicativa da realidade espiritual apresentada à humanidade.

               As consequências morais desse conhecimento espiritual que abrange as questões filosóficas fundamentais representam o aspecto norteador da conduta pessoal e determinam o esclarecimento sobre o sentido da existência.

               A bagagem cultural dos adeptos varia significativamente, fazendo com que o grau de compreensão dos princípios e valores doutrinários não seja uniforme. Assim, apesar de haver apenas um Espiritismo, há diferentes graus de maturidade doutrinária daqueles que se autodeclaram espíritas e esse fato leva um observador externo a supor, incorretamente, que a diversidade interpretativa dos conceitos e das práticas decorram de um corpo teórico fragmentado.

               Ao assumir informações doutrinariamente desconectadas como sendo espíritas, sem qualquer fundamentação lógica baseada em fatos ou na concordância universal, o indivíduo ignora a coerência metodológica necessária para se validar o conhecimento. Assim procede ao incorporar opiniões próprias ou de terceiros, inclusive de origem mediúnica, como argumentos suficientes para contraporem-se com os ensinos dos Espíritos apresentados por Kardec.

               A admiração e a aderência afetiva a médiuns e palestrantes fazem com que os adeptos presos em posturas e práticas típicas de religiões tradicionais depositem a validade das informações em seus ídolos encarnados, como se esses últimos fossem elos legítimos com o sagrado. A fé cega não encontra respaldo na base doutrinária espírita, porém pode se manifestar naqueles que ainda encontram-se em período de adaptação à cultura espírita.

               Opiniões sobre qualquer assunto são perfeitamente compreensíveis diante da liberdade de expressão e de consciência, mas o respectivo reconhecimento como integrantes do conhecimento espírita depende da atitude racional, analítica e coerente das mesmas com o método de validação e com os princípios espíritas já consolidados.



[1] Vide o capítulo II, item 99, da obra O que é o espiritismo, de Allan Kardec.

[2] Vide o capítulo XXXI de O livro dos médiuns, de Allan Kardec.


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