segunda-feira, 2 de março de 2020

Comentários sobre as alterações da 5a. ed. de A Gênese - Cap. VI




A Gênese: Capítulo 6

Uranografia geral

Marco Milani*

     O 6º capítulo da obra A Gênese, intitulado Uranografia Geral, é constituído por um conjunto de comunicações mediúnicas de Galileu, obtidas pelo médium Camille Flamarion, o qual era astrônomo.
     Tais comunicações ocorreram na Sociedade de Estudos Espíritas de Paris, nos anos de 1862 e 1863. Por ser o ditado de um único Espírito, Allan Kardec sinaliza que o conteúdo deve ser apreciado com a ponderação necessária, sem constituir-se como ensino validado pelos Espíritos.
     Certamente, o panorama descrito por Galileu é enriquecedor, lançando luzes e instigando a investigação sobre questões astronômicas e sobre a grandiosidade do Criador que o homem ainda estava, e está, longe de se aprofundar.
     Considerando a opinião do comunicante e o estágio científico da época, alguns conceitos hoje seriam, naturalmente, expostos e discutidos sob outra perspectiva, com algumas retificações e ratificações das hipóteses lançadas, mas em essência expressam a onipotência e infinitude divinas.
     Na 5ª edição francesa de A Gênese, publicada três anos após a desencarnação de Allan Kardec, este capítulo, assim como todos os demais, sofreu alterações cuja autoria é desconhecida. Dos 64 itens presentes na edição original, foram eliminados os itens nºs 58 a 60, organizados pelo subtítulo “A Ciência”, que também desaparece.
     Ao reeorganizar os textos dos últimos itens, o subtitulo final, que na edição original intitulava-se “Considerações morais”, passa-se a chamar “Diversidade dos mundos.
Os itens eliminados são os seguintes:

58. A inteligência humana expandiu suas poderosas concepções além dos limites do espaço e do tempo. Entrou no domínio inacessível das antigas idades, sondou o mistério dos céus imperscrutáveis e explicou o enigma da criação. O mundo exterior desdobrou, pelo ponto de vista da ciência, seu panorama esplêndido e sua magnífica opulência, e os estudos dos homens permitiram que se chegasse até o conhecimento da verdade; ele explorou o universo, encontrou a expressão das leis que o regem e a aplicação das forças que o sustentam, e se não lhe foi dado ver, face a face, a causa primeira, pelo menos chegou à noção matemática da série das causas secundárias.
Nesse último século, sobretudo, o método experimental, o único verdadeiramente científico, foi posto em prática nas ciências naturais, e com seu auxílio o homem deixou, aos poucos, os prejulgamentos da velha escola e das teorias especulativas para manter-se no campo da observação, cultivando-a com atenção e inteligência.
Sim, a ciência dos homens é sólida e fecunda, digna de nossas simpatias pelo seu futuro cheio de descobertas úteis e proveitosas, porque a natureza é agora um livro de fácil acesso às pesquisas do homem estudioso, um mundo aberto às investigações do pensador, uma região brilhante que o Espirito humano já visitou e na qual ele pode avançar com decisão, levando por bússola a experiência.

59. Um velho amigo de minha vida terrestre assim me disse recentemente. Uma peregrinação nos havia reconduzido à Terra e, novamente, estudamos moralmente este mundo. Meu companheiro acrescentou que o homem está hoje familiarizado com as leis, as mais abstratas da Mecânica, da Física, da Química. Que suas aplicações à indústria não são menos notáveis que as deduções da ciência pura e que a criação inteira, sabiamente estudada por ele, parece ser, daqui pra frente, sua verdadeira característica. E como prosseguíamos nosso caminhar, já fora deste mundo, eu lhe respondi nesses termos:
60. Frágil átomo perdido em um ponto imperceptível do infinito, o homem acreditou que abrangia com seu olhar a extensão do universo, quando apenas podia observar a região que habita; acreditou estudar as leis da natureza inteira, mas, suas percepções se limitam às forças em sua volta; acreditou determinar a grandeza do céu quando se consome para definir um simples grão de poeira. O campo de suas observações é tão exíguo que lhe custa achar um fato perdido de vista. O céu e a terra do homem são tão pequenos que a alma, em seu voo, não tem o tempo de estender as asas antes que chegue às últimas paragens acessíveis à observação.
O Universo incomensurável nos cerca por toda parte, ostentando para além dos céus riquezas desconhecidas, colocando em ação forças inapreciáveis, desenvolvendo maneiras de existência inconcebíveis para nós e propagando ao infinito o esplendor e a vida.
E o ácaro da farinha, minúsculo inseto privado de asas e de luz, cuja existência triste transcorre sobre a pétala onde nasceu, pretenderia, por ter dado alguns passos sobre essa pétala agitada pelo vento, ter o direito de falar sobre a árvore imensa a qual pertence e da qual apenas percebe a sombra? Imaginaria, loucamente, poder raciocinar sobre a floresta da qual sua árvore faz parte e discutir com sabedoria sobre a natureza dos vegetais que aí se desenvolvem e sobre os seres que habitam neles, do Sol longínquo, do qual os raios adentram algumas vezes, para levar-lhe o movimento e a vida? Em verdade, o homem seria pretensioso demais em querer medir a grandeza infinita com sua pequenez ínfima.
O homem, também, deveria estar bem compenetrado desta ideia: que se o difícil trabalho dos séculos passados lhe tenha permitido os primeiros conhecimentos das coisas, se o progresso do Espírito o tenha colocado no vestíbulo do saber, ele nada mais fez que soletrar a primeira página do livro. Ele é igual a uma criança, suscetível de se enganar a cada palavra, de tal maneira que, longe de pretender interpretar a obra de modo doutoral, deve se contentar em estudar humildemente, página por página, linha por linha. Felizes aqueles que podem fazê-lo.

     Os trechos eliminados na 5ª edição refletem, claramente, a percepção do Espírito Galileu sobre a relevância da ciência no progresso e destaca a grandiosidade do universo que exige humildade do homem para reconhecer sua pequenez, combatendo o orgulho diante de um conhecimento ainda ínfimo da realidade.
     A eliminação de todo o subtítulo destinado à ciência, em um capítulo que basicamente explora o conhecimento científico da época e do futuro, não parece fazer sentido, ainda que não exista prejuízo doutrinário.


* Diretor do Departamento de Doutrina da USE-SP. Presidente da USE Regional de Campinas.

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