sexta-feira, 4 de setembro de 2020

A relevância da obra A Gênese e a polêmica 5ª edição

 


A relevância da obra A Gênese e a polêmica 5ª edição

Marco Milani

 (Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 179, set/out 2020, p. 7)


Lançado no mês de janeiro de 1868, esse que é o livro mais maduro das chamadas obras fundamentais, contém o complemento e o desenvolvimento de aspectos considerados desde o início da estruturação do corpo doutrinário espírita. Conforme declarou o próprio Allan Kardec na introdução, essa nova obra representa “um passo à frente nas consequências e aplicações do Espiritismo” e, ainda, que a respectiva publicação veio a seu tempo, quando as ideias chegaram à maturidade. A relevância dos assuntos abordados exigiu se “evitar qualquer precipitação”.

Ressalta-se que o caráter essencial da doutrina é a generalidade e concordância do ensino dos Espíritos, pois o resultado dos ensinamentos coletivos e convergentes sobrepõem-se às simples opiniões isoladas. Para se alterar esses ensinamentos, portanto, não basta haver opiniões divergentes, mas a coletividade e a concordância dos Espíritos devem, obrigatoriamente, posicionarem-se em sentido oposto.

Kardec salienta que a redação de A Gênese foi presidida com os mesmos escrúpulos das obras anteriores quanto à generalidade do ensino, com exceção de algumas hipóteses devidamente apontadas como opiniões pessoais e que careceriam de confirmação. Tais hipóteses não se confundem com o ensino dos Espíritos validado pelo critério da universalidade.

Muitas das ideias desenvolvidas em A Gênese foram apresentadas na forma de esboços na Revista Espírita, pois a mesma representaria um terreno de ensaio destinado a sondar a opinião dos homens e dos Espíritos sobre alguns princípios antes de serem admitidos como partes constitutivas da doutrina. Assim, não basta ter sido publicada nesse periódico para a ideia ser considerada um ensino geral dos Espíritos, pois necessita ser criteriosamente validada.

Ao explicitar as relações perenes entre os dois elementos constitutivos do universo, o espiritual e o material, a obra destaca que qualquer fenômeno natural, para ser plenamente compreendido, deve levar em conta essa interação constante. O Espiritismo, nesse sentido, pode oferecer a chave para a compreensão dessa reciprocidade e dos fatos decorrentes das leis da natureza, marchando lado a lado com a ciência.

O conteúdo desenvolvido em A Gênese, portanto, requer a atenção de qualquer adepto espírita.

Desde o final de 2017, quando o detalhado trabalho de pesquisa documental realizado por Simoni Privato Goidanich veio a público pelo livro de sua autoria intitulado O Legado de Allan Kardec, reacendeu-se uma polêmica iniciada em 1884, com o artigo Uma Infâmia, de Henri Sausse. Na ocasião, Sausse denunciou no jornal Le Spiritisme, órgão de divulgação da União Espírita Francesa, que as alterações sofridas na 5ª edição impactavam significativamente a obra e citou, como exemplo, a supressão do item 67 do capítulo XV, o qual reafirma que Jesus teve um corpo carnal e aponta hipóteses plausíveis para justificar o desaparecimento de seu corpo após sua morte. Sausse finaliza o artigo lançando suspeitas de que essa supressão beneficiaria os partidários de determinadas ideias que contrariavam a lógica. Podemos depreender que Sausse se referia a partidários roustanguistas, os quais defendiam a hipótese docetista de que a natureza do corpo de Jesus não era material, como qualquer encarnado, mas fluídica. Assim, essa denúncia voltava-se para uma eventual adulteração da obra por terceiros, após a morte de Kardec em março de 1869 e destacava a deturpação doutrinária roustanguista, infiltrada no movimento espírita francês naqueles tempos.

Em 1884, os integrantes da União Espírita Francesa, como Gabriel Delanne, Leon Denis e a confidente de Amelie Boudet, Berthe Froppo, dentre outros, criticavam os desvios de conduta e as incoerências doutrinárias do secretário-gerente da Revista Espírita e administrador da Sociedade Anônima da Caixa Geral e Central do Espiritismo, Pierre-Gaetan Leymarie.

A polêmica prolongou-se por mais alguns meses, com réplicas e tréplicas de Leymarie e outros envolvidos, como Armand Desliens, antigo administrador da Sociedade Anônima no período de 1870 a 1871. Ainda que o caso gerasse tensão e embates de narrativas no fragilizado movimento espírita francês, a denúncia de Sausse não se perpetuou e tendeu ao adormecimento com o passar dos anos, até a descoberta de registros históricos realizada por Simoni Privato que lançou novas luzes sobre o caso.

Após a apresentação à comunidade espírita mundial de evidências históricas que colocavam em dúvida a autoria das modificações ocorridas na 5ª edição da obra A Gênese, diversos estudiosos e demais interessados passaram a acompanhar o desenvolvimento das investigações e a explorar aspectos, até então, despercebidos.

 Graças à pesquisa de Simoni Privato, a obra mais madura de Kardec recebeu o desvelo compatível à sua relevância, justamente em seu sesquicentenário.

Recentemente, fatos como a descoberta de uma suposta 5ª edição de A Gênese publicada em meados de 1869 e a análise de manuscritos originais de Kardec, revelando detalhes relacionados não somente à rotina de trabalho do Codificador do Espiritismo, mas também contendo informações cotidianas e pessoais, alimentaram a busca por novas evidências capazes de auxiliar a identificação da autoria das modificações em sua totalidade ou, ainda, parcialmente.

Sobre as hipóteses envolvendo a autoria da 5ª edição, pode-se considerar:

H0: Kardec não é responsável pelas modificações;

H1: Kardec é parcialmente responsável pelas modificações;

H2: Kardec é integralmente responsável pelas modificações.

          Se a acusação proposta por Sausse fosse restrita à adulteração da obra, sem prejuízo doutrinário gerado pelas alterações, o aceite de uma das hipóteses anteriores encaminharia o caso. Sausse, entretanto, destaca haver prejuízo doutrinário na análise comparativa entre as edições original e modificada, citando os capítulos XV e XVIII, por exemplo.

          Enquanto as investigações avançam sobre a autoria das modificações, a análise comparativa sob a perspectiva doutrinária também se desenvolve por diferentes grupos de pesquisadores para se verificar se, efetivamente, houve prejuízo sofrido na 5ª edição.

Pode parecer estranho e desnecessário para alguns, ou até um “sacrilégio” para outros mais afeitos à idolatria, realizar-se uma análise comparativa entre as edições, pois o mais importante, para eles, seria a autoria. Não é incomum encontrarmos pessoas que afirmam que, se H2 for confirmada, então a 5ª edição estaria, necessariamente, mais adequada e correta do que a 4ª edição e deveria ser aceita sem qualquer questionamento. Kardec, entretanto, recomenda que façamos justamente o contrário sobre qualquer objeto de estudo, que analisemos criteriosamente sob a égide da razão e não do personalismo ou da credulidade cega. No mínimo, o estudo comparativo entre as edições original e modificada enriquece o conhecimento de quem assim procede e, ainda, se as hipóteses H0 ou H1 não puderem ser rejeitadas, reforça-se a necessidade de análise de eventual impacto doutrinário devido às alterações.

Desde 2018 a União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo (USE-SP) vem incentivando a formação de grupos de estudos comparativos entre as edições original e modificada de A Gênese e promovendo análises doutrinárias sobre essa questão, fomentando o debate de ideias e não de pessoas.

O produto dessas discussões vem sendo publicado no periódico Dirigente Espírita (DE), veículo oficial de comunicação da USE-SP, e diferentes prejuízos doutrinários ou de compreensão do texto já foram identificados na 5ª edição, como detalhado nas análises dos capítulos XIV, XV e XVIII publicadas, respectivamente, no DE nºs 169, 167 e 168.

Adicionalmente, pode-se afirmar que houve melhorias e correções gramaticais em determinados trechos de capítulos da 5ª edição, sem impacto doutrinário. Esse fato não confirma nenhuma das hipóteses sobre a autoria.

Mesmo mantendo a expectativa de que em algum dia contemos com evidências objetivas para se aceitar com segurança qualquer uma das hipóteses elencadas anteriormente, as análises comparativas já realizadas permitem afirmar que, sob o aspecto da coerência doutrinária e clareza do texto, a 4ª edição de A Gênese mostra-se mais adequada do que a 5ª edição em diferentes passagens, fazendo com que o estudo comparativo seja fortemente indicado a todo adepto espírita.


Fonte: https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2020/09/DE179-C.pdf

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