A
relevância da obra A Gênese e a polêmica 5ª edição
Marco
Milani
Lançado
no mês de janeiro de 1868, esse que é o livro mais maduro das chamadas obras
fundamentais, contém o complemento e o desenvolvimento de aspectos considerados
desde o início da estruturação do corpo doutrinário espírita. Conforme declarou
o próprio Allan Kardec na introdução, essa nova obra representa “um passo à
frente nas consequências e aplicações do Espiritismo” e, ainda, que a
respectiva publicação veio a seu tempo, quando as ideias chegaram à maturidade.
A relevância dos assuntos abordados exigiu se “evitar qualquer precipitação”.
Ressalta-se
que o caráter essencial da doutrina é a generalidade e concordância do ensino
dos Espíritos, pois o resultado dos ensinamentos coletivos e convergentes
sobrepõem-se às simples opiniões isoladas. Para se alterar esses ensinamentos,
portanto, não basta haver opiniões divergentes, mas a coletividade e a
concordância dos Espíritos devem, obrigatoriamente, posicionarem-se em sentido
oposto.
Kardec
salienta que a redação de A Gênese foi presidida com os mesmos escrúpulos das
obras anteriores quanto à generalidade do ensino, com exceção de algumas
hipóteses devidamente apontadas como opiniões pessoais e que careceriam de
confirmação. Tais hipóteses não se confundem com o ensino dos Espíritos
validado pelo critério da universalidade.
Muitas
das ideias desenvolvidas em A Gênese foram apresentadas na forma de esboços na
Revista Espírita, pois a mesma representaria um terreno de ensaio destinado a
sondar a opinião dos homens e dos Espíritos sobre alguns princípios antes de
serem admitidos como partes constitutivas da doutrina. Assim, não basta ter
sido publicada nesse periódico para a ideia ser considerada um ensino geral dos
Espíritos, pois necessita ser criteriosamente validada.
Ao
explicitar as relações perenes entre os dois elementos constitutivos do
universo, o espiritual e o material, a obra destaca que qualquer fenômeno
natural, para ser plenamente compreendido, deve levar em conta essa interação
constante. O Espiritismo, nesse sentido, pode oferecer a chave para a
compreensão dessa reciprocidade e dos fatos decorrentes das leis da natureza,
marchando lado a lado com a ciência.
O
conteúdo desenvolvido em A Gênese, portanto, requer a atenção de qualquer
adepto espírita.
Desde
o final de 2017, quando o detalhado trabalho de pesquisa documental realizado
por Simoni Privato Goidanich veio a público pelo livro de sua autoria
intitulado O Legado de Allan Kardec, reacendeu-se uma polêmica iniciada em
1884, com o artigo Uma Infâmia, de Henri Sausse. Na ocasião, Sausse denunciou
no jornal Le Spiritisme, órgão de divulgação da União Espírita Francesa,
que as alterações sofridas na 5ª edição impactavam significativamente a obra e citou,
como exemplo, a supressão do item 67 do capítulo XV, o qual reafirma que Jesus
teve um corpo carnal e aponta hipóteses plausíveis para justificar o
desaparecimento de seu corpo após sua morte. Sausse finaliza o artigo lançando
suspeitas de que essa supressão beneficiaria os partidários de determinadas
ideias que contrariavam a lógica. Podemos depreender que Sausse se referia a
partidários roustanguistas, os quais defendiam a hipótese docetista de que a
natureza do corpo de Jesus não era material, como qualquer encarnado, mas
fluídica. Assim, essa denúncia voltava-se para uma eventual adulteração da obra
por terceiros, após a morte de Kardec em março de 1869 e destacava a deturpação
doutrinária roustanguista, infiltrada no movimento espírita francês naqueles
tempos.
Em
1884, os integrantes da União Espírita Francesa, como Gabriel Delanne, Leon Denis
e a confidente de Amelie Boudet, Berthe Froppo, dentre outros, criticavam os
desvios de conduta e as incoerências doutrinárias do secretário-gerente da Revista
Espírita e administrador da Sociedade Anônima da Caixa Geral e Central do
Espiritismo, Pierre-Gaetan Leymarie.
A
polêmica prolongou-se por mais alguns meses, com réplicas e tréplicas de
Leymarie e outros envolvidos, como Armand Desliens, antigo administrador da Sociedade
Anônima no período de 1870 a 1871. Ainda que o caso gerasse tensão e embates de
narrativas no fragilizado movimento espírita francês, a denúncia de Sausse não
se perpetuou e tendeu ao adormecimento com o passar dos anos, até a descoberta
de registros históricos realizada por Simoni Privato que lançou novas luzes
sobre o caso.
Após a
apresentação à comunidade espírita mundial de evidências históricas que
colocavam em dúvida a autoria das modificações ocorridas na 5ª edição da obra A
Gênese, diversos estudiosos e demais interessados passaram a acompanhar o
desenvolvimento das investigações e a explorar aspectos, até então,
despercebidos.
Graças à pesquisa de Simoni Privato, a obra
mais madura de Kardec recebeu o desvelo compatível à sua relevância, justamente
em seu sesquicentenário.
Recentemente,
fatos como a descoberta de uma suposta 5ª edição de A Gênese publicada em
meados de 1869 e a análise de manuscritos originais de Kardec, revelando
detalhes relacionados não somente à rotina de trabalho do Codificador do
Espiritismo, mas também contendo informações cotidianas e pessoais, alimentaram
a busca por novas evidências capazes de auxiliar a identificação da autoria das
modificações em sua totalidade ou, ainda, parcialmente.
Sobre
as hipóteses envolvendo a autoria da 5ª edição, pode-se considerar:
H0:
Kardec não é responsável pelas modificações;
H1:
Kardec é parcialmente responsável pelas modificações;
H2:
Kardec é integralmente responsável pelas modificações.
Se a acusação proposta por Sausse fosse restrita à
adulteração da obra, sem prejuízo doutrinário gerado pelas alterações, o aceite
de uma das hipóteses anteriores encaminharia o caso. Sausse, entretanto,
destaca haver prejuízo doutrinário na análise comparativa entre as edições
original e modificada, citando os capítulos XV e XVIII, por exemplo.
Enquanto as investigações avançam sobre a autoria das
modificações, a análise comparativa sob a perspectiva doutrinária também se
desenvolve por diferentes grupos de pesquisadores para se verificar se,
efetivamente, houve prejuízo sofrido na 5ª edição.
Pode
parecer estranho e desnecessário para alguns, ou até um “sacrilégio” para
outros mais afeitos à idolatria, realizar-se uma análise comparativa entre as
edições, pois o mais importante, para eles, seria a autoria. Não é incomum
encontrarmos pessoas que afirmam que, se H2 for confirmada, então a 5ª edição
estaria, necessariamente, mais adequada e correta do que a 4ª edição e deveria
ser aceita sem qualquer questionamento. Kardec, entretanto, recomenda que
façamos justamente o contrário sobre qualquer objeto de estudo, que analisemos
criteriosamente sob a égide da razão e não do personalismo ou da credulidade
cega. No mínimo, o estudo comparativo entre as edições original e modificada enriquece
o conhecimento de quem assim procede e, ainda, se as hipóteses H0 ou H1 não
puderem ser rejeitadas, reforça-se a necessidade de análise de eventual impacto
doutrinário devido às alterações.
Desde
2018 a União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo (USE-SP) vem
incentivando a formação de grupos de estudos comparativos entre as edições
original e modificada de A Gênese e promovendo análises doutrinárias sobre essa
questão, fomentando o debate de ideias e não de pessoas.
O
produto dessas discussões vem sendo publicado no periódico Dirigente Espírita
(DE), veículo oficial de comunicação da USE-SP, e diferentes prejuízos
doutrinários ou de compreensão do texto já foram identificados na 5ª edição,
como detalhado nas análises dos capítulos XIV, XV e XVIII publicadas,
respectivamente, no DE nºs 169, 167 e 168.
Adicionalmente,
pode-se afirmar que houve melhorias e correções gramaticais em determinados
trechos de capítulos da 5ª edição, sem impacto doutrinário. Esse fato não
confirma nenhuma das hipóteses sobre a autoria.
Mesmo mantendo
a expectativa de que em algum dia contemos com evidências objetivas para se
aceitar com segurança qualquer uma das hipóteses elencadas anteriormente, as
análises comparativas já realizadas permitem afirmar que, sob o aspecto da
coerência doutrinária e clareza do texto, a 4ª edição de A Gênese mostra-se
mais adequada do que a 5ª edição em diferentes passagens, fazendo com que o estudo comparativo
seja fortemente indicado a todo adepto espírita.
Fonte: https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2020/09/DE179-C.pdf
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